A Música para piano na Madeira
PRINCIPAL
MÚSICOS E REPERTÓRIO
PIANO NA MADEIRA
ENSINO
COMÉRCIO
LAZER
SAIBA MAIS...
 

 

 

O piano como instrumento de uma prática

musical doméstica

Vera Lopes Inácio


 

No contexto da prática musical doméstica, durante os séculos XVIII e XIX, o piano torna-se o grande instrumento representativo, dadas as suas potencialidades e facilidades de produção sonora.

O piano e a performance pianística doméstica são objectos possuidores de uma leitura textual e discursiva. Estão implicados não só aspectos sonoros, mas também, como defende Richard Leppert (1993), a envolvência do instrumento no ambiente onde se insere (como constituinte e constituição) podendo formar/moldar este mesmo ambiente. Leppert refere que o piano produz significados, englobando aquilo que denomina de sight (visão, olhar) que abrange práticas que produzem som e componentes visuais/imagens. Neste sentido o piano torna-se um objecto com diferentes leituras, pois olha-se, ouve-se e toca-se, capacitando, muitas das vezes, associações à análise iconográfica. Por conseguinte, o estudo do pensamento musical é fundamental na análise das funções que a música desempenha na cultura, pois estamos a observar a música como uma actividade social, considerando aquilo que a circunda.

O piano tem sido o instrumento, por excelência, do virtuoso e do amador, bem como, na visão de Cyril Erlich, no seu livro The Piano: a History, um “potencial símbolo do avanço social” (1993: 1). Neste sentido, Arthur Loesser menciona que “o piano é o objecto que tem preenchido as necessidades do tempo, pois é expressivo, tocá-lo exige uma adaptação à sua capacidade e é caro o suficiente para ser desejado socialmente” (1954: 218).

O piano do século XIX está marcado pelos melhoramentos e inovações técnicas que sofreu e por uma consequente extensão do seu repertório musical. Já durante as últimas três décadas do século XVIII, quando começa o rápido desenvolvimento do piano, em termos tecnológicos e de produção, houve um crescimento na quantidade e diversidade de música publicada para o instrumento, com uma especialização dos géneros para tecla, num mercado em ascensão, abrangendo tanto intérpretes profissionais como amadores. Além disso, emergem estilos de escrita distintos para responder às diferenças nos mecanismos e no som dos instrumentos de Viena, alemães e ingleses. No século XVIII e inícios do século XIX, os géneros clássicos Concerto e Sonata estavam associados, respectivamente, ao virtuosismo e à prática doméstica. A sonata emergiu para a exibição pública e consequente prática virtuosística com os contributos de Haydn e Beethoven, entre outros (Wheelock, 2000: 109-131). Durante as primeiras décadas do século XIX foi publicada uma vasta colecção de obras para piano, que incluíam transcrições para duas ou quatro mãos de excertos das mais populares óperas (árias, aberturas, números de conjunto) e sinfonias. Para David Wainright este é um “tipo de ‘repertório brilhante, mas não difícil’, que podia ser facilmente tocado pelas meninas de uma casa com fim a impressionar potenciais pretendentes” (1975: 84). Percebe-se assim, claramente, a importância da prática doméstica no contexto oitocentista, pois esta impulsiona um determinado tipo de repertório pensado para quem o vai executar. Se o concerto para piano identifica-se com o virtuosismo e a performance pública, já a sonata adopta outro perfil que se enquadra melhor na música doméstica.

Richard Leppert (1992) descreve as conexões que se estabeleceram entre a mulher e o piano, que durante o século XIX foram múltiplas e complexas. Este instrumento musical está envolvido com questões de género, que o conduzem a uma função extra-musical no ambiente da casa, que se manifesta no vínculo do instrumento à mulher a três níveis, tendo em conta a sua contínua ligação temporal ao ambiente que envolve a casa: família, esposa e mãe. O piano, ou outro instrumento de tecla em contexto doméstico, estabelece determinadas concepções que devem ser observadas a fim de se perceber o papel feminino. Por vezes, no século XIX os instrumentos de teclado eram oferecidos à mulher, pelo seu marido, como prenda de casamento, sendo, muito possivelmente, a única peça de mobília da casa nesta situação. Leppert defende, neste caso, tratar-se de um reflexo do aprisionamento de mulher. O marido deseja a sua submissão e concentra-a num objecto que lhe ofereceu, estando sob o seu domínio. Por outro lado, a representação de cenas de caça na decoração feita nos instrumentos de tecla entre os séculos XVI e XVIII aludia a uma estética da violência. A interpretação musical de mulheres, na esfera privada, em instrumentos com esta decoração poderia assolar a atmosfera feminina.

É certo que as alterações impulsionadas pela “revolução” que o piano sofreu estão associadas a um crescimento do mercado e por isso mesmo é inquestionável que os criadores tenham em conta o gosto do público para quem se dirigem, pois trata-se de um mercado capitalista de pianos domésticos. Aqui surge uma noção importante que é a adaptação do instrumento ao meio onde se insere. A conquista do instrumento pela burguesia fez com que este tivesse que passar por um ajustamento às casas burguesas, numa tentativa de economia de espaço. Estão patentes necessidades de praticabilidade e também de utilitarismo.

A função do piano como peça de mobiliário torna-se fulcral no contexto da prática musical doméstica, pois há que ter em conta o local onde este se insere e que condicionantes o circundam. Existem casos em que o instrumento adopta mais do que uma utilidade: num instrumento disposto na vertical do construtor inglês Broadwood & Sons (1815) observa-se uma dupla função: musical e de arrumação. Quando tem as portas fechadas nada parece fora do normal (estas permaneciam normalmente fechadas), mas quando as mesmas se abrem observa-se a função utilitária das prateleiras que existem no instrumento. Na perspectiva de Richard Leppert, esta dupla função também expõe um duplo significado, pois apresenta o instrumento como pertencente à classe média e marca-o, ao mesmo tempo, como pertencente ao feminino. O facto de possuir espaço para arrumação associa, mais uma vez, a performance do piano ao papel da mulher, enquanto esposa e mãe. Por outro lado, o espaço que contém poderá servir para a organização da biblioteca musical da família. Os construtores de pianos estavam cientes do papel feminino durante o século XIX, onde o domínio patriarcal subjugava a mulher e as suas funções, restringindo-a à esfera privada. Outro exemplo é o piano de mesa em forma de mesa de costura, que mais uma vez denota a ligação ao feminino, num instrumento pensado para integrar a esfera doméstica. Logo, Leppert observa que o utilitarismo burguês, tendo o piano como objecto feminino, é também uma reivindicação masculina à música feita por esquemas e design decorativos.

O estudo desenvolvido sobre as razões da grande existência de pianos na ilha Graciosa certifica a existência, nos nossos dias, de práticas congéneres às acima descritas nesta ilha. Muito seguramente, tais práticas ocorreram, e podem ainda ocorrer, por todo o país. Ainda que não se verifique uma prática pianística doméstica, os instrumentos mantêm-se nas respectivas casas, sofrendo adaptações às transformações físicas locais. O “respeito” e “reverência” face ao instrumento permitem que o mesmo subsista, assim, como peça de mobiliário, arca de arrumos, garrafeira, móvel integrado/envolvido no meio físico da casa.

 

Conclusão

A notória predominância do piano no contexto da música doméstica reflecte e produz associações sonoras e visuais, que na maioria dos casos estão associadas ao feminino. A prática musical na esfera privada não deve ser, portanto, menosprezada, pois é uma fonte de representação multidisciplinar fulcral para a compreensão de construção de identidades sócio-culturais em contextos definidos. Por conseguinte, a relevância da prática pianística feminina desde o século XVIII até ao século XX torna-se num factor indicador desta dinâmica que envolve o ambiente doméstico.

 

 

Bibliografia

ERLICH, Cyril
1993 The Piano – A History, Oxford University Press.

LEPPERT, Richard
1992 “Sexual Identity, Death and the Family Piano”, 19th Century Music, Vol. 16. No. 2, pp. 105-128.
1993 The Sight of Sound: Music, Representation and the History of the Body, University California Press.

LOESSER, Arthur
1954 Men, Women and Pianos, a Social History, General Publishing Company, Ltd, Canada.

PARAKILAS, James (ed.)
2000 Piano Roles – Three Hundred Years of Life with the Piano, Yale University Press.

WAINRIGHT, David
1975 The Piano Makers, Hutchinson & Co, London.

WHEELOCK, Gretchen A.
2000 “The Classical repertory revisited: instruments, players and styles” in PARAKILAS, James, (ed.), Piano Roles – Three Hundred Years of Life with the Piano, Yale University Press.